h.d.mabuse on 9 Apr 2001 16:46:12 -0000


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Texto originalmente publicado pela revista Caros Amigos: www.carosamigos.com.br

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mabuse


Saudades do anarquista Glauber
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por Paulo Ramos Derengoski

     Estranho país, o nosso que se dá ao luxo de deixar morrer, solitário e 
esquecido, um intelectual do porte de Glauber Rocha, do qual pelo menos um 
filme (Deus e o Diabo na Terra do Sol) está na lista dos dez maiores de 
todos os tempos, segundo pesquisa internacional da revista francesa Cahiers 
du Cinema.
     Como a maioria dos intelectuais brasileiros, Glauber morreu pobre e 
endividado. Seus últimos dias foram num hospital da luxuosa vila de Sintra, 
de quem Eça de Queirois já dizia que não há um só recanto que não seja um 
poema - cidade favorita dos mouros, que a ocupavam durante séculos. Já os 
gregos, que sabiam o que era belo, chamavam-na Cíntia (Monte da Lua), 
cenário dos alucinantes amores de Diana.
     Mas o que teria levado Glauber até Sintra? Teria sido o castelo sob o 
qual está enterrado o Tesouro dos Templários? O que leva os leões a se 
internarem nos desertos? O que leva os leopardos a subir até os abismos das 
crateras de Kilimanjaro?
     Ninguém mais saberá.
     Mas o fato é que, se neste país ele plantou a semente de uma poderosa 
cultura cinematográfica e influenciou toda uma geração, colheu apenas 
frutos dourados do ódio. E agora já se transformou em adubo da terra que 
ele tanto amava. Do Brasil só lhe restaram o nome de um teatro na sua 
Bahia, uma placa no Festival de Gramado e uma sepultura medida: a 
propriedade cultural que não lhe deram em vida.
     No seu maior filme, Deus e o Diabo na Terra do Sol, ele tentou dizer 
que a terra não era de um nem de outro, mas do homem, que nela trabalha. E 
mais uma vez se enganou, porque, ao fim e ao cabo, a única terra que resta 
ao homem é a cova rasa que servirá de sepultura. A enorme ameba cultural 
que é o Brasil, esse vasto continente sem esqueleto - por isso mesmo 
inquebrável - prefere, talvez com razão, os heróis sem caráter, os 
Macunaímas, os Pedro Malasartes, os Jeca Tatus, os Leopardos Patacas, os 
Vitorinos Papa-Rabos, os Deolitos Venta-Grandes, as Capitus, as Chica da 
Silva, os Negros da Venta Furada.....
     Convençamo-nos de que aqui não há mais lugar para os pescadores de 
Barravento, para os cangaceiros de Deus e o Diabo, para os guerrilheiros de 
Terra em Transe e para os idealistas de Idade da Terra.
     Pobre Glauber: morreu vendo a agonia da ciência que fala da luta entre 
os homens: a arte da política. Foi atacado pela esquerda festiva e pela 
direita manifestiva, mas conseguiu o milagre de quebrar - através do 
paroxismo oral - os esquemas de visualização de nosso cinema.
     No fundo, o drama de Glauber Rocha, o drama de todo intelectual 
brasileiro, é que somos autores de uma antiepopéia cujo início (ou fim) é a 
confirmação de um fim (ou início) começado há muito tempo: vivemos a 
dialética da morte.
     Nossa geração viveu um tempo de espasmos e derrotas. E nele se desfez. 
E se custou a aprender que nestes tristes trópicos a intensa movimentação 
leva a um só lugar, à autodestruição.
     Ousado e impetuoso, nos seus últimos filmes, Cabezas Cortadas ou Leão 
de Sete Cabeças - ele desfez provocações sobre a política, rompendo com o 
esquema de uma América Latina ajustada ao pensamento racionalista europeu.
     Seguindo a trilha de um Alejo Carpentier e um Jorge Luís Borges, ele 
via o continente sob uma configuração telúrica maravilhosa - e pôs fim a um 
modo de firmá-lo. Seus personagens sempre foram reais e irreais, fracos e 
fortes, vítimas e autores da história, buscando inutilmente o descanso numa 
região sempre à beira do fantástico- e do autoritarismo.
     Não importa que seus filmes tenham-se perdido na indisciplina e uma 
beleza vaga, plástica e sensual. A Idade da Terra, por exemplo, é uma 
sinfonia cinematográfica que talvez só venha a ser avaliada no futuro. 
Porque, da mesma forma que o barroco foi a negação do ideal estético 
renascentista, os delírios formais do filme de Glauber Rocha significam a 
rejeição do cinema sério: afirmação do equilíbrio no desequilíbrio: O 
exagero! Sim: Exagero!
     Um vasto painel revolucionário semelhante ao muralismo mexicano. Um 
grande afresco de excrescências monstruosas.
     É difícil escrever sobre Glauber nos dias de hoje, pois os comissários 
de bonezinho de couro e as milicianas xexelentas de maxissaia só gostam de 
ouvir verdades desagradáveis, contadas de maneira agradável. Este é um país 
onde todo mundo tá virando " humorista" ....
     Os filmes de Glauber não têm humor nem choram de piedade, nem apontam 
soluções. Anarquista legítimo, ele manipulou sempre a contradição viva, a 
música louca, o gesto desesperado....

Paulo Ramos Derengoski é jornalista




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