Miguel Afonso Caetano on Tue, 18 Jul 2006 15:36:59 +0200 (CEST)


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[nettime-br] A Economia Política da Produção entre Pares


A Economia Política da Produção entre Pares
http://www.p2pfoundation.net/index.php/A_Economia_Política_da_Produção_entre_Pares

Michel Bauwens


(Tradução portuguesa de "The Political Economy of Peer Production" por Miguel Caetano – miguel.a.caetano_at_gmail.com)


Desde que Marx identificou nas fábricas industriais de Manchester o modelo da nova sociedade capitalista nunca tinha ocorrido uma transformação tão profunda dos princípios da nossa vida social como a que sucede actualmente. À medida que os sistemas sociais, económicos e políticos se transformam em redes distribuídas, uma nova dinâmica humana emerge: o peer to peer (P2P). Na medida em que faz surgir um terceiro modo de produção, um terceiro modo de autoridade e um terceiro modo de propriedade, o P2P está destinado a transformar a nossa economia política de uma forma sem precedentes. Este ensaio pretende desenvolver um quadro conceptual ('a teoria P2P') que seja capaz de explicar estes novos processos sociais.


Peer to Peer


O P2P não se refere a todos os comportamentos ou processos que ocorrem em redes distribuídas. Especificamente, o P2P designa todos os processos que visam aumentar a participação generalizada de participantes equipotenciais. Iremos definir estes termos quando examinarmos as características dos processos P2P, mas por agora apresentamos as características mais importantes e gerais.


Os Processos P2P:


- produzem valor de uso através da cooperação livre entre produtores que têm acesso a capital distribuído: este é o modo de produção P2P, um 'terceiro modo de produção', diferente da produção com fins lucrativos e da produção pública efectuada por companhias detidas pelo estado. O seu produto não reside num valor de troca destinado ao mercado mas num valor de uso dirigido a uma comunidade de utilizadores. - são administrados pela comunidade de produtores e não por mecanismos de alocação do mercado ou por uma hierarquia empresarial. Este é o modo de autoridade P2P ou 'terceiro modo de autoridade'. - disponibilizam livremente o valor de uso segundo um princípio de universalidade, através de novos regimes de propriedade comum. Este é o seu 'modo de propriedade distribuída ou entre pares', diferente da propriedade privada ou da propriedade pública (do estado).


A Infra-estrutura do P2P


O que é necessário para facilitar a emergência de processos entre pares? A primeira condição é a existência de uma infra-estrutura tecnológica que actue ao nível dos processos entre pares e permita o acesso distribuído a capital 'fixo'. Os computadores individuais que formam uma máquina universal capaz de executar qualquer função lógica são uma forma de 'capital fixo' distribuído, acessível a baixo custo a muitos produtores. A internet, sendo uma rede de ponto a ponto, foi especificamente concebida para a participação a partir das bordas (isto é, os utilizadores de computadores) sem o recurso obrigatório a centros - hubs. Apesar de não estar totalmente nas mãos dos seus participantes, a internet é controlada através de um modo de autoridade distribuída e exterior à hegemonia completa de determinados agentes privados ou públicos. Os componentes hierárquicos da internet (tais como os protocolos IP "empilhados", o Sistema de Nomes de Domínio – DNS - descentralizado, etc...) não restringem a participação. Os comunicadores virais ou meshworks são uma extensão lógica da internet. Com esta metodologia, os dispositivos criam as suas próprias redes através da capacidade em excesso - largura de banda inutilizada - evitando a necessidade de de uma infra-estrutura pré-existente. Os movimentos das redes comunitárias sem fios e em defesa do Espectro Aberto, os sistemas televisivos de file-serving – TiVo - e as infra-estruturas alternativas de telecomunicação assentes em meshworks são representativos desta tendência.

O segundo requisito consiste em sistemas alternativos de informação e
comunicação que permitam a comunicação autónoma entre agentes
cooperantes. A Web (em particular, a Writable Web e a Web 2.0 que
estão em vias de ser estabelecidas) permitem a produção, disseminação
e 'consumo' do material escrito, ao passo que os avanços
correlacionados do podcasting e do webcasting criam uma
'infra-estrutura alternativa de informação e comunicação' para a
criação áudio e audiovisual. A existência dessa infra-estrutura
permite a produção autónoma de conteúdo que pode ser distribuído sem o
intermédio dos media clássicos de radiodifusão e publicação impressa
(embora possam vir a surgir novas formas de mediação).

O terceiro requisito é a existência de uma infra-estrutura de software
destinada à cooperação autónoma global. Um número crescente de
ferramentas de colaboração que se inserem no software de redes
sociais, como os blogs e as wikis, facilitam a criação de confiança e
capital social, permitindo a criação de grupos globais que conseguem
criar valor de uso sem o intermédio da produção ou distribuição
efectuada por organizações com fins lucrativos.

O quarto requisito é uma infra-estrutura legal que permita a criação
de valor de uso e que o proteja da apropriação privada. A General
Public Licence (que proíbe a apropriação do código de software), a
análoga Open Source Initiative e certas versões da licença Creative
Commons desempenham esta função. Elas possibilitam a protecção do
valor de uso comum e empregam métodos virais para se disseminar. A GPL
e outras licenças semelhantes só podem ser utilizadas em projectos
que, em troca, colocarem o seu código-fonte adaptado no domínio
público.

O quinto requisito é cultural. A difusão da intelectualidade de massa
(isto é, a distribuição da inteligência humana) e as transformações
associadas nas formas de sentir e ser (ontologia), formas de conhecer
(epistemologia) e nas constelações de valores têm contribuído para a
criação do tipo de individualismo cooperativo necessário para manter
um ethos que torne possível os projectos P2P.


As Características do P2P


Os processos P2P ocorrem em redes distribuídas. As redes distribuídas são redes em que os agentes autónomos podem determinar livremente o seu comportamento e ligações sem o intermédio obrigatório de centros. Tal como Alexander Galloway insiste no seu livro sobre o poder protocolar, as redes distribuídas não são o mesmo que redes descentralizadas, nas quais os centros são obrigatórios. O P2P baseia-se num poder distribuído e no acesso distribuído aos recursos. Numa rede descentralizada como a do sistema de aeroportos dos Estados Unidos, os aviões têm que passar por determinados centros; contudo, em sistemas distribuídos como a internet ou os sistemas de auto-estradas, os centros podem existir mas não são obrigatórios e os agentes podem sempre evitá-los.

Os processos P2P são caracterizados por equipotencialidade ou
'anti-credencialismo'. Isto significa que não existe qualquer selecção
a priori de quem pode participar. A capacidade de cooperar é
verificada no próprio processo de cooperação. Deste modo, os projectos
estão abertos a todos os recém-chegados, desde que eles possuam as
competências necessárias para contribuir para um projecto. Estas
competências são verificadas e validadas pela comunidade no próprio
processo de produção. Isto é vísivel em projectos de publicação aberta
como o jornalismo-cidadão: qualquer um pode publicar e verificar a
veracidade dos artigos. Na validação colectiva são empregues sistemas
de reputação. A filtragem é a posteriori e não a priori. Deve-se por
isso contrastar o anti-credencialismo com a revisão anónima - peer
review - tradicional onde as referências são um pré-requisito
essencial à participação.

Os projectos P2P são caracterizados por holoptismo. O holoptismo
consiste na capacidade e no design implícitos nos processos entre
pares que disponibilizam aos participantes o livre acesso a toda a
informação sobre os outros participantes; não em termos de
privacidade, mas em termos da sua existência e contributos (isto é,
informação horizontal), bem como do acesso aos objectivos, métricas e
documentação do projecto como um todo (isto é, a dimensão vertical).
Isto pode ser contrastado com o panopticismo, o qual é característico
dos projectos hierárquicos: os processos são concebidos para
restringir o conhecimento 'total' a uma pequena elite, ao passo que os
participantes apenas têm acesso ao que 'precisam saber'. No entanto,
nos processos P2P a comunicação não é de cima para baixo e baseada em
regras de supervisão estritamente definidas, mas a retroacção -
feedback - é sistémica, integrada no protocolo do sistema cooperativo.

O acima referido não esgota as características da produção entre
pares. Em baixo, iremos continuar a nossa investigação destas
características no contexto de uma comparação com outros modos de
produção existentes.


O P2P e os Outros Modos de Produção


O quadro conceptual da nossa comparação é a teoria dos Modelos Relacionais do antropólogo Alan Page Fiske, abordada na sua obra principal The Structure of Social Life. O facto de que os modos de produção estão inseridos em relações inter-subjectivas – isto é, caracterizadas pelas suas combinações relacionais particulares – oferece o quadro conceptual necessário para distinguir o P2P. De acordo com Fiske, existem quatro tipos básicos de dinâmicas inter-subjectivas, válidas ao longo do tempo e do espaço, nas suas próprias palavras:

"Na maior parte das vezes, as pessoas empregam apenas quatro modelos
fundamentais para organizar a maioria dos aspectos em todas as
culturas. Estes modelos são a Partilha Comunitária, a Estratificação
por Autoridade, a Correspondência por Igualdade e a Fixação de Preços
pelo Mercado. A Partilha Comunitária (PC) é uma relação em que as
pessoas consideram alguma díade ou grupo como equivalente e
indiferenciado em relação ao domínio social em questão. Exemplos disso
são pessoas que utilizam um bem comum – commons - (PC referente à
utilização de um determinado recurso), pessoas intensamente
apaixonadas (PC referente às suas identidades sociais), pessoas que
"não perguntam por quem os sinos dobram, pois eles dobram por si" (PC
referente ao sofrimento partilhado e bem-estar colectivo) ou pessoas
que matam indiscriminadamente qualquer membro de um grupo inimigo em
retaliação por um ataque (PC referente à responsabilidade colectiva).
Na Estratificação por Autoridade (EA), as pessoas assumem posições
assimétricas numa hierarquia linear em que os subordinados se
submetem, respeitam e (possivelmente) obedecem, enquanto que os
superiores têm prioridade e assumem a responsabilidade ministerial
pelos subordinados. Exemplos disso são as hierarquias militares (EA em
decisões, controlo e muitos outros assuntos), culto dos antepassados
(EA em dádivas de devoção filial e expectativas de protecção e
cumprimento de normas), moralidades religiosas monoteístas (EA para a
definição do que é certo e errado através de mandamentos ou da vontade
de Deus), sistemas de estatuto social como estratificações raciais ou
de classe (EA referente ao valor social das identidades) e
estratificações como as classificações de equipas desportivas (EA
referente ao prestígio). As relações de EA baseiam-se em percepções de
assimetrias legítimas e não no poder coercivo; elas não são
inerentemente exploratórias (embora possam implicar poder ou provocar
prejuízos).

Nas relações de Correspondência por Igualdade (CI) as pessoas tentam
acompanhar o equilíbrio ou a desigualdade entre os participantes e
sabem o que seria necessário para restituir o equilíbrio.
Demonstrações comuns disso são a alternância por turnos - turn-taking
- , eleições do tipo "uma pessoa, um voto", distribuições de partilha
igualitária e a vingança do "olho por olho, dente por dente". Os
exemplos incluem desportos e jogos (CI referente a regras,
procedimentos, equipamento e terreno), cooperativas de baby-sitting
(CI referente à prestação de cuidados a crianças) e a indemnização em
géneros (CI referente à reparação de erros). As relações assentes na
Fixação de Preços pelo Mercado (FPM) são orientadas para rácios ou
taxas socialmente significativas como preços, salários, juros, rendas,
dízimos ou análises de custo-benefício. Não é obrigatório que o
dinheiro seja o meio e não é necessário que as relações baseadas na
FPM sejam egoístas, concorrenciais, maximizadoras ou materialistas –
qualquer um dos quatro modelos pode apresentar qualquer uma destas
características. As relações do tipo FPM não são necessariamente
individualistas; uma família pode ser uma unidade PC ou EA que possui
uma empresa que funciona num modo FPM na sua relação com outras
empresas. Exemplos disso são as propriedades que podem ser compradas,
vendidas ou administradas como capital de investimento (terra ou
objectos como FPM), casamentos negociados por contrato ou de forma
implícita, em termos de custos e benefícios para os parceiros,
prostituição (sexo como FPM), normas burocráticas de eficiência de
custos (distribuição de recursos como FPM), juízos utilitaristas sobre
o maior bem para o maior número de pessoas ou normas de equidade na
atribuição de direitos em proporção com as contribuições (duas formas
de moralidade como FPM), avaliações da eficiência do tempo dispendido
e estimativas dos rácios de mortos previstos (agressão como FPM)."i

Cada tipo de sociedade ou civilização é uma combinação destes quatro
modos, mas pode-se argumentar plausivelmente que um modo domina
sempre, afectando os outros modos subservientes. Em termos históricos,
o primeiro modo dominante foi a reciprocidade por parentesco ou
linhagem, as chamadas economias da dádiva tribais. O elemento
essencial de ligação era a 'pertença'. As dádivas geravam obrigações e
relações para além dos parentes mais próximas, criando um campo mais
vasto de troca. As sociedades agrárias ou feudais eram dominadas pela
estratificação por autoridade, isto é, baseavam-se na fidelidade.
Finalmente, é um facto óbvio de que a economia capitalista é dominada
pela fixação de preços pelo mercado.


O P2P e a Economia da Dádiva


O P2P é frequentemente descrito como uma 'economia da dádiva' (ver Richard Barbrook para um exemplo). Consideramos, contudo, que isto é um pouco incorrecto. A principal razão é que o peer to peer não é uma forma de correspondência por igualdade: não se baseia na reciprocidade. O P2P segue a máxima "cada um contribui de acordo com as suas capacidades e vontade e cada um retira de acordo com as suas necessidades". Não existe uma reciprocidade obrigatória associada. Nas formas puras de produção entre pares, os produtores não são renumerados. Deste modo, se existe 'dotação', trata-se de uma dotação sem qualquer reciprocidade; a utilização do valor de uso produzido entre pares não cria uma obrigação contrária. O surgimento do peer to peer é contemporâneo de novas formas da economia da dádiva como o Local Exchange and Trading Systems - Sistemas de Intercâmbio e Comércio Local - e o recurso a moedas complementares baseadas na reciprocidade; no entanto, estas não podem ser classificadas como produção entre pares.

Isto não quer dizer que estas formas não sejam complementares, dado
que tanto a correspondência por igualdade como a partilha comunitária
derivam do mesmo espírito da dádiva. A produção entre pares pode
ocorrer mais facilmente na esfera dos bens imateriais onde o capital
despendido – input - consiste em tempo livre e no excesso disponível
de recursos informáticos. A correspondência por igualdade, os esquemas
assentes na reciprocidade e a produção cooperativa são necessárias na
esfera material onde o custo do capital intervem. Por agora, a
produção entre pares não oferece qualquer solução à subsistência
material dos seus participantes. Por isso, muitas pessoas inspiradas
pelo ethos igualitário irão recorrer à produção cooperativa, à
economia social e outros mecanismos dos quais poderão obter um
rendimento, mantendo-se ao mesmo tempo fiéis aos seus princípios.
Neste sentido, estes mecanismos são complementares.


O P2P e a Hierarquia


O P2P não se caracteriza pela ausência de uma hierarquia ou estrutura, mas por hierarquias e estruturas flexíveis baseadas no mérito que são empregues para fomentar a participação. A liderança é também 'distribuída'. Na maioria dos casos, os projectos P2P são liderados por um núcleo de fundadores que incorporam os objectivos iniciais do projecto e coordenam o vasto número de indivíduos e micro-equipas que desenvolvem patches – código de correção do software. A sua autoridade e liderança advém do contributo que dão para a concretização do projecto e da sua participação contínua. Se bem que por vezes se afirme que os projectos entre pares consistem em 'ditaduras benevolentes', não devemos esquecer que, uma vez que a cooperação é inteiramente voluntária, a existência duradoura destes projectos baseia-se no consentimento da comunidade de produtores e no forking (isto é, é sempre possível a criação de um novo projecto independente).

A relação entre autoridade e participação e a sua evolução histórica
foi traçada de forma bastante apropriada por John Heron:

Parecem existir pelo menos quatro graus de desenvolvimento cultural
que se encontram associados a níveis de compreensão moral:

1. culturas autocráticas que definem os direitos de modo limitativo e
opressivo e onde não existem direitos de participação política;
2. culturas democráticas restritas que praticam a participação
política através da representação, mas que apresentam nenhuma ou
escassa participação das pessoas no processo de tomada de decisões em
todos os outros domínios como a investigação, a religião, educação,
indústria, etc.;
3. culturas democráticas mais vastas que praticam tanto a
participação política como vários graus de diferentes tipos de
participação;
4. culturas P2P colectivas numa rede global libertária visando a
abundância em que todos possuem direitos equipotenciais de
participação em cada sector da actividade humana.

Estes quatro níveis podem ser expostos em termos das relações entre
hierarquia, cooperação e autonomia.

1. A hierarquia define, controla e constrange a cooperação e a autonomia;
2. A hierarquia apenas concede um certo grau de cooperação e
autonomia na esfera política;
3. A hierarquia concede um certo grau de cooperação e autonomia na
esfera política noutras esferas;
4. A única função da hierarquia reside no seu surgimento espontâneo
no contexto do início e desenvolvimento contínuo da
autonomia-em-cooperação em todas as esferas da actividade humana.ii


O P2P e a Propriedade Comunitária


Através do P2P, as pessoas constroem de modo voluntário e cooperativo um commons - bem comum ou espaço público - de acordo com o princípio comunista: "de cada um de acordo com as suas capacidades, para cada um de acordo com as suas necessidades." O valor de uso criado pelos projectos P2P é produzido mediante livre cooperação, sem coerção para com os produtores e os utilizadores obtêm livre acesso ao valor de uso resultante. A infra-estrutura legal que descrevemos atrás cria um 'Commons informativo'. O novo Commons aproxima-se da forma mais antiga de commons (em particular, as terras comunitárias do campesinato durante a Idade Média e das primeiras associações mutualistas de trabalhadores durante a Era Industrial), mas também difere na medida em que apresenta características imateriais. O Commons anterior era localizado, utilizado e, por vezes, regulado por comunidades específicas; o novo Commons é disponibilizado e regulado universalmente por cibercolectividades globais que consistem habitualmente em grupos de afinidade. Enquanto que o novo Commons se baseia em bens não-rivais (isto é, num contexto de abundância), as formas anteriores de Commons físicos (ar, àgua, etc.) funcionam cada vez mais num contexto de escassez, passando assim a ser mais regulados.


O P2P e o Mercado: A Imanência vs. Transcendência do P2P


O P2P e o Mercado


As trocas entre pares podem ser consideradas em termos do mercado apenas na medida em que os indivíduos podem contribuir livremente ou obter o que necessitam, seguindo as suas aptidões individuais, existindo uma mão invisível que aproxima todas as partes mas sem a intervenção de qualquer mecanismo monetário. Elas não são verdadeiros mercados em qualquer acepção possível: tanto a fixação de preços pelo mercado como o comando empresarial são desnecessários para a tomada de decisões relativas à distribuição dos recursos. Existem ainda diferenças adicionais:

- Os mercados não funcionam segundo os critérios da inteligência
colectiva e do holoptismo, mas sim sob a forma de uma inteligência de
enxame semelhante à dos insectos. Existem de facto agentes autónomos
num ambiente distribuído, mas cada indivíduo apenas tem em conta o seu
próprio benefício imediato.
- Os mercados baseiam-se na cooperação 'neutral' e não na cooperação
sinérgica: não existe criação de qualquer reciprocidade.
- A actuação dos mercados não visa directamente o valor de uso mas
sim o valor de troca e o lucro.
- Enquanto que o P2P aspira à participação de todos, os mercados
apenas garantem as necessidades dos que possuem poder de compra.

As desvantagens dos mercados incluem:

- Não dão uma resposta adequada a necessidades comuns que não
envolvem pagamento directo (defesa nacional, administração geral,
educação e saúde pública). Para além disso, não levam em conta
externalidades negativas (o ambiente, custos sociais, gerações
vindouras).
- Dado que os mercados abertos tendem a diminuir o lucro e os
salários, eles dão sempre origem a anti-mercados, onde os oligopólios
e os monopólios utilizam a sua posição privilegiada de modo a que o
estado manipule o mercado em seu benefício.


O P2P e o Capitalismo


Apesar de apresentarem diferenças significativas, o P2P e o mercado capitalista estão fortemente interligados. O P2P depende do mercado e o mercado depende do P2P.

A produção entre pares depende fortemente do mercado na medida em que
a produção entre pares cria valor de uso sobretudo através de produção
imaterial, sem propocionar um rendimento aos seus produtores. Os
participantes não podem viver da produção entre pares apesar de
retirarem sentido e valor dela, podendo através dela ultrapassar em
eficiência e produtividade as alternativas do mercado com fins
comerciais. Até agora, a produção entre pares tem se desenvolvido nas
fendas do mercado.

Mas o mercado e o capitalismo também dependem do P2P. O capitalismo
transformoou-se num sistema que depende de redes distribuídas, em
particular, a infra-estrutura P2P de computação e comunicação. A
produtividade baseia-se em grande medida no trabalho de equipa, o qual
é habitualmente organizado de formas derivadas da autoridade da
produção entre pares. O suporte prestado pelas principais empresas de
TIs ao desenvolvimento do open-source é uma prova dessa utilização
derivada até mesmo por parte dos novos regimes proprietários mais
comuns. O modelo empresarial genérico parece ser o da empresa deslizar
– surf - por cima da infra-estrutura P2P, criando um valor
excedentário através de serviços que podem ser comercializados por um
valor de troca. Contudo, o suporte do software livre e open-source
prestado pelas empresas coloca um problema interessante. Será que o
software FS/OOS patrocionado e, eventualmente, gerido por empresas
ainda continua a ser 'P2P'? Apenas em parte. No caso de empregar as
estruturas legais GPL/OSI, ele resulta, de facto, num regime de
propriedade comum. Se os produtores iguais se tornarem dependentes do
rendimento e, mais ainda, se a produção passar a ser controlada pela
hierarquia empresarial, ele deixaria então de poder ser considerado
como uma forma de produção entre pares. Deste modo, as forças
capitalistas recorrem sobretudo a implementações parciais do P2P. O
recurso táctico e instrumental da infra-estrutura e das práticas
colaborativas do P2P é apenas uma parte da história. De facto, a
dependência do capitalismo contemporâneo do P2P é sistémica. À medida
que toda a infra-estrutura de base do capitalismo se torna
distribuída, ela gera práticas P2P, tornando-se dependente delas. A
escola franco-italiana do 'capitalismo cognitivo' acentua que a
criação de valor já não se limita apenas à empresa, passando também a
resultar da intelectualidade de massas dos trabalhadores do
conhecimento que, através das vivências e aprendizagens adquiridas ao
longo da vida, inovam constantemente dentro e fora da empresa. Este é
um argumento importante, dado que justificaria aquilo que entendemos
constituir a única solução para o alargamento da esfera do P2P à
sociedade em geral: o rendimento básico universal. Apenas a
independência do trabalho e da infra-estrutura salarial permite
garantir que os produtores iguais possam continuar a desenvolver esta
esfera de valor de uso altamente produtivo.

Será que tudo isto significa que a produção entre pares é apenas
imanente ao sistema, resultando do capitalismo, e de maneira nenhuma
transcendente ao capitalismo?


O P2P e os Netarquistas


Mais importante que a relação genérica que acabámos de descrever é o facto de que os processos entre pares também contribuírem para formas mais específicas do capitalismo distribuído. A utilização em larga escala do software open-source nas empresas, entusiasticamente apoiado pelo capital de risco e grandes companhias de Tis como a IBM, está a gerar uma plataforma de software distribuído que irá reduzir drasticamente os rendimentos monopolistas desfrutados por companhias como a Microsoft e a Oracle, enquanto que a Skype e o VoIP irão redistribuir drasticamente a infra-estrutura de telecomunicações. Para além disso, também indica o caminho para um novo modelo de negócio que está para 'além' dos produtos, centrando-se em contrapartida nos serviços associados ao modelo de software FS/OSS nominalmente livre. As indústrias estão-se a transformar gradualmente de modo a incorporarem a inovação gerada pelos utilizadores e uma nova intermediação poderá ocorrer em torno dos media gerados pelos utilizadores. Muitos trabalhadores do conhecimento estão a optar por carreiras profissionais fora das empresas, tornando-se micro-empreendedores através do recurso a uma infra-estrutura participativa cada vez mais sofisticada, uma espécie de commons empresarial digital.

As entidades com fins lucrativos que estão a desenvolver e a potenciar
estas novas plataformas de participação representam uma nova subclasse
que eu denomino classe netárquica. Se o capitalismo cognitivo for
definido como o primado dos activos intelectuais sobre os activos
industriais de capital fixo e, por conseguinte, no recurso ao
alargamento dos direitos de propriedade intelectual de forma a gerar
rendimentos monopolistas (tal como os capitalistas vectoriais
descritos por McKenzie Wark obtêm o seu poder dos vectores
mediáticos), então estes novos capitalistas netárquicos prosperam com
a constituição e exploração das redes participativas. É sugestivo que
a Amazon tenha crescido em torno das críticas efectuadas pelos
utilizadores aos produtos que comercializa, que a eBay subsista graças
a uma plataforma de leilões distribuídos a nível global e que o Google
seja constituído por conteúdos gerados pelos utilizadores. Contudo,
embora estas companhias possam recorrer aos direitos de propriedade
intelectual para obter ocasionalmente verbas adicionais, estes não são
em nenhuma acepção o cerne do seu poder. O seu poder depende da posse
da plataforma.

Em termos mais gerais, o capitalismo netárquico é um rótulo do capital
que abraça a revolução do peer to peer, isto é, todas essas forças
ideológicas para as quais o capitalismo é o horizonte definitivo da
possibilidade humana, é a força por detrás da imanência do peer to
peer. Em oposição, apesar de ligado a ele numa aliança temporária,
estão as forças do Common-ismo, aquelas que colocam a sua fé na
transcendência do peer to peer, numa reforma da economia política que
vá para além do domínio do mercado.


Aspectos Transcendentes do P2P


De facto, a nossa análise dos aspectos imanentes do peer to peer, referindo-se ao modo como tanto depende como resulta do capitalismo, não esgota o assunto. O P2P possui importantes aspectos transcendentes que vão para além das restrições impostas pela economia com fins lucrativos:

- A produção entre pares possibilita efectivamente a cooperação livre
entre produtores que têm acesso aos seus próprios meios de produção,
sendo que o valor de uso resultante dos projectos suplanta o das
alternativas comerciais.

Em termos históricos, ainda que forças com uma produtividade superior
se possam encontrar temporariamente implantadas no antigo sistema
produtivo, elas conduzem em última análise a graves sublevações e a
reestruturações da economia política. O surgimento de modos
capitalistas no interior do sistema feudal é um exemplo pertinente.
Isto é particularmente importante dado que sectores dominantes da
economia com fins lucrativos estão deliberadamente a retardar o
crescimento produtivo (na música; através das patentes) e a tentar
ilegalizar as práticas de produção e partilha P2P.

- A autoridade entre pares transcende tanto a autoridade do mercado
como a do estado.
- As novas formas de propriedade comum universal trancendem as
limitações dos modelos de propriedade pública e privada e estão a
reconstituir um sector dinâmico do Commons.

Numa altura em que o próprio triunfo do modo capitalista de produção
coloca em risco a biosfera e provoca um número cada vez maior de danos
psíquicos (e físicos) à população, o surgimento de uma alternativa
como esta é particularmente apelativo, correspondendo às novas
necessidades culturais de grande parte da população. O surgimento e
crescimento do P2P é, por isso, acompanhado, por uma nova ética do
trabalho (a Ética Hacker de Pekka Himanen), por novas práticas
culturais como círculos de pares na pesquisa espiritual (a análise
cooperativa de John Heron) mas, sobretudo, por um novo movimento
social e político que tem como desígnio promover a sua expansão. Este
movimento P2P ainda emergente (e que inclui o movimento do software
livre e open-source, o movimento pelo acesso livre, o movimento pela
cultura livre, entre outros) repete os métodos de organização e os
objectivos do movimento por uma globalização alternativa, estando
rapidamente a converter-se no equivalente do movimento socialista na
era industrial. Assume-se como alternativa permanente ao status quo e
expressão do crescimento de uma nova força social: os trabalhadores do
conhecimento.

Com efeito, a intenção da teoria peer to peer é fornecer uma
sustentação teórica às práticas transformadoras destes movimentos.
Consiste numa tentativa de criar uma compreensão radical de que um
novo tipo de sociedade, baseada na centralidade do Commons e inserida
num mercado e estado reformados, está ao alcance das possibilidades
humanas. Uma teoria como esta teria que explicar correctamente não só
a dinâmica dos processos entre pares, mas também o seu ajustamento a
outras dinâmicas intersubjectivas. Por exemplo, como é que o P2P
modifica os modos de reciprocidade, de mercado e de hierarquia? Em que
transformações ontológicas, epistemológicas e axiológicas esta
evolução se apoia? E o que poderá ser um possível ethos P2P positivo?
Um elemento crucial desta teoria peer to peer seria o desenvolvimento
de uma táctica e uma estratégia para tal prática transformadora. A
questão essencial está em saber se o peer to peer pode ser alargado
para além da esfera imaterial em que surgiu.


A expansão do modo de produção P2P


Dada a dependência do P2P em relação ao modo de mercado existente, quais são as suas possibilidades de crescer para além da esfera actual de bens imateriais não-rivais?

Eis algumas teses em torno deste potencial:

- O P2P pode surgir não somente na esfera imaterial da produção
intelectual e de software mas onde quer que haja acesso a tecnologia
distribuída, ciclos computacionais disponíveis, telecomunicações
distribuídas e qualquer tipo de meshwork ou comunicador viral.
- O P2P pode surgir onde quer que estejam disponíveis outras formas
de capital fixo distribuído, como é o caso do carpooling - sistema de
boleias com custos partilhados e rotatividade do condutor -, que é o
segundo método de transporte mais utilizado nos Estados Unidos.
- O P2P pode surgir onde quer que o processo de design possa ser
separado do processo de produção física. Mecanismos capitalistas de
grandes dimensões podem coexistir com processos P2P, dos quais
dependem em termos de design e concepção.
- O P2P pode surgir onde quer que o capital financeiro possa ser
distribuído. Iniciativas como o banco ZOPA apontam nessa direcção. A
aquisição e o usufruto cooperativos de grandes quantidades de
mercadorias capitalistas constituem uma possibilidade. O suporte e
financiamento estatal do desenvolvimento de software open-source é
outro exemplo.
- O P2P pode ser alargado e apoiado mediante a introdução de um
rendimento básico universal.

Este último, que estabelece um rendimento independente do trabalho
assalariado, tem o potencial de apoiar um maior desenvolvimento do
valor de uso gerado pelo P2P. Por via do ethos da 'actividade para
todos' (em vez do emprego para todos) do P2P, o rendimento básico
recebe um novo e poderoso argumento: não apenas como sendo eficaz em
termos de pobreza e desemprego mas também como produtor de um novo e
importante valor de uso para a comunidade humana.

Contudo, uma vez que é díficil vislumbrar como é que a produção e a
troca de valor de uso poderão vir a tornar-se na única forma de
produção, será mais realista entender o peer to peer como parte de um
processo de mudança. Num cenário assim, o peer to peer iria não só
coexitir com mas também transformar profundamente outros modos
intersubjectivos.

Uma economia política assente no Commons estaria centrada em torno do
peer to peer mas iria coexistir com:

- Uma potente e revigorada esfera de reciprocidade (economia da
dádiva) centrada em redor da introdução de moedas complementares que
valorizam o tempo disponibilizado na prestação de serviços – é o caso
dos  'bancos de tempo'.
- Uma esfera renovada para a troca mercantil, o tipo de 'capitalismo
natural' descrito por Paul Hawken, David Korten e Hazel Henderson, em
que os custos da reprodução natural e social deixam de ser
exteriorizados e em que o imperativo de crescimento é prescindido em
favor de uma economia equilibrada – throughput - como descrita por
Herman Daly.
- Um estado renovado que actue dentro de um contexto de participação
de muitos actores – multistakeholdership - e que deixe de estar
submetido a interesses empresariais, passando a funcionar como um
árbitro imparcial entre os Commons, o mercado e a economia da dádiva.

Este objectivo poderia ser a inspiração para uma poderosa alternativa
ao domínio neoliberal e criar um caleidoscópio de movimentos
'Common-istas' amplamente inspirados por estas metas.


Notas


i O site de Alan Page Fiske está disponível em http://www.sscnet.ucla.edu/anthro/faculty/fiske/relmodov.htm.

ii Comunicação pessoal com o autor.


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