ricardorosas on Tue, 21 Feb 2006 00:51:00 +0100 (CET)


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[nettime-br] Fome e Tecnologia (ainda sobre sistemas paralelos)


Oi

Mando aqui um adendo à discussão sobre sistemas paralelos que a Giseli iniciou, um texto antigo do Hermano Viana sobre redes paralelas e o Brasil. A discussão está mais no pantamar da música mas serve igualmente para esquentar essas questões - nós temos fome de quê? No mais, para por um texto na web que estava desaparecido, e só havia sido publicado no encarte do Radio Samba do Nação Zumbi. Boa leitura!

Ricardo

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FOME E TECNOLOGIA
Hermano Viana

Quando o mundo começou a ficar conectado por transmissores de rádio, números de telefone e indústrias multinacionais, muita gente profetizou  que as diferenças culturais estariam com seus dias contados. Passaríamos a viver num planeta onde qualquer pessoa se veste igual, come igual, pensa igual. Hoje, depois de tantas décadas de aldeia global, essas previsões não podem mais ser levadas a sério. Muitas diferenças já desapareceram, é claro. Mas novas diferenças, produtos da voracidade com que povos do terceiro mundo incorporam a tecnologia ocidental, surgem todos os dias, modificando todas as fronteiras.

A musica pop é um exemplo perfeito dessa nova realidade/variedade tecno-social. Em todos os continentes existem bandas reprocessando o rock e o funk americanos, inventando centenas de outros ritmos a partir das mesmas informações. A combinação do sampler com o computador e com o equipamento de gravação digital (cada vez mais baratos), facilitou a pirataria entre os estilos do pop e suas simbioses com tradições musicais de todas as culturas.

Quanto mais uma determinada cultura tem fome de tecnologia e de inovação, mais o resultado dessas apropriações é interessante. O exemplo jamaicano é incontestável: dos estúdios mais pobres de Kingston saíram, nos anos 60, técnicas de gravação e mixagem que ainda hoje são copiadas pela vanguarda da música ?trance? ou ?ambient?. Tmabém foi no gueto negro das grandes cidades americanas (o Terceiro Mundo dentro do Primeiro Mundo) que apareceram as colagens rítmicas do hip hop, da house, do techno, renovando as concepções de composição musical e da relação música/tecnologia que dominavam a indústria fonográfica. E nos estúdios de Lagos, Nigéria, de Colombo, Sri Lanka, ou do Cairo, Egito, estão sendo produzidas outras novas formas de se fazer ou pensar a música que certamente irão ser reapropriadas por músicos do resto do mundo. E assim por diante. A pobreza dos seus criadores não tem tanta importância: vale mais ter sua ?fome? canalizada na direção da antropofagia cultural certa. Isso não quer dizer que vivemos num planeta de igual oportunidade para todos. A melhor descrição para a nossa situação atual foi descrita num livro de ficção científica, o Islands in the Net (traduzido para o português como Piratas de Dados), do cyberpunk Bruce Sterling, de um lado existem a rede e os ?privilegiados? que trabalham para as corporações transnacionais; do outro existem ilhas de pirataria informatizada lutando contra o domínio da Rede. Os piratas da informática, como seus antepassados marítimos, paralela de subversão intercontinental. Eles também são os herdeiros mais contemporâneos da ?bandidagem? de Antonio Conselheiro, Lampião ou Zapata.

Voltando para a música: hoje também existe uma grande Rede, aquela das gravadoras transnacionais, ao lado de um circuito (também transnacional) de pequenas ilhas independentes de piratarias sonoras de todos os tipos. A relação entre a Rede e as ilhas piratas não é apenas de confronto. Nada acontece de interessante sem a troca de informações, muitas vezes clandestina, muitas vezes oficial, entre esses dois territórios. A rede precisa dos piratas (pois sua burocracia é comprovadamente incapaz de produzir inovações) e os piratas precisam da rede ( quem mais tem tanto dinheiro para desenvolver os equipamentos que todos necessitam?) E então a fome é generalizada : todo mundo buscando alimento nos lugares menos esperados.

No Brasil essa situação se complica ainda mais. Aqui só uma minoria tem acesso aos aparelhos que possibilitam a interação com a Rede ou com qualquer um dos seus tentáculos. A poucos quilômetros das grandes cidades é fácil encontrar músicos que constroem seus próprios instrumentos com a pele dos animais que eles mesmos caçaram com armas do tempo da onça. Não existe uma distância instransponível entre o totalmente rural e o iniciante ciberespaço brasileiro. Mas nada disso é exatamente um problema: se a situação é mais complexa, as possibilidades de piratarias e mediações culturais se multiplicam. E se é assim, quem tem mais fome (de bola, de tecnologia, de outras culturas) vai mais longe.

O futurólogo Alvin Toffler já disse que o Brasil é um país de todas as Ondas. Aqui a primeira Onda, da revolução agrícola, convive com a Segunda Onda, da revolução industrial, e com a Terceira Onda, da revolução informática. É difícil saber qual é a onda de quem, quem manda em que terreiro, quem tem fome de quê.

O Brasil é um país de famintos. Um país que (como já disse Gilberto Gil) só conhece raiz se for de mandioca. Um país que, para saciar sua eterna fome, pode até misturar maracatu rural com heavy metal. Tudo isso com molho de caranguejo mutante. Do mais profundo mangue.

P.S.: Gilberto Freyre definiu, no Diário de Pernambuco, em 1923, os habitantes do Recife como um povo ?amigo do silêncio?. Ainda bem que os tempos mudaram.

Fonte: Nação Zumbi. Rádio S.A.M.B.A.: Serviço ambulante da Afrociberdelia. Rio de Janeiro, Ybrazil Music, 2000. (Cd com encarte).
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